Como conciliar a filosofia budista “aproveitar a jornada”​ com a ambição em conquistar grandes objetivos?

abril 22, 2020

 

Eu tenho a oportunidade de estar fisicamente um passo distante do nosso contexto cultural para dissecar com mais clareza o que é a minha natureza e o que é influência externa.

Já faz um ano que estou em busca de uma forma de viver mais verdadeira.

É a segunda vez que volto para a Tailândia em busca de preencher um vazio, não daqueles devastadores, mas um vazio como uma peça faltante do meu quebra-cabeça, algo que mesmo para alguém que já faz o que ama e tem a rotina de deseja, era incômodo. (Parênteses: não é preciso vir ao outro lado do mundo para essa busca interna. Mas como o meu estilo de vida é nômade, é possível conciliar os dois).

Nessa busca, encontramos momentos para parar a engrenagem do jeito que ela sempre funcionou e testar outras formas de viver e de pensar. Geralmente, o que estava submerso emerge com mais facilidade à superfície e começamos a encará-lo como real. No meu caso, um desses submarinos foi a espiritualidade.

Ao nos reconectarmos com a fé, independente de qual ela seja, alguns princípios voltam a ocupar espaço na nossa rotina. Ao mesmo tempo, para que eles se acomodem, é preciso descartar ou descarregar comportamentos ou hábitos antigos.

O que não é necessariamente fácil: deixá-los para trás é muitas vezes ter que desconstruir o que você foi ou que te disseram que seria legal você ser.

Ao explorar mais esse lado, cruzei com muitas filosofias, ferramentas, ritos e tradições. Uma delas, uma filosofia praticada diariamente onde estou: o Budismo. E tão logo quanto surge a compreensão das leituras, também surgem os desafios da aplicação prática.

E o meu primeiro questionamento refletiu à princípio o que me parecia uma contradição: Como continuar com o desejo de grandes conquistas e imaginar o futuro sem deixar de lado a paz de aproveitar com calma a jornada?

 

Contexto: O Budismo e a Tailândia

Eu não conhecia muito sobre o Budismo ou sobre a Tailândia antes de estar aqui. Não sabia que o país era governado por um Rei. Não pensava que era um país tão seguro. Não mensurava a gentileza das pessoas no dia a dia. E não imaginava a solidez da filosofia budista no dia a dia, captado pelos altares montados em cada casa e em cada estabelecimento em toda a cidade.

Com o tempo comecei a absorver essa cultura e também a questionar alguns pontos:

Como é possível um país com tanta pobreza, ser tão seguro? É possível andar na rua sozinha de madrugada com o celular na mão, em meio às ruelas escuras, sem medo.

Como é possível que as pessoas sejam tão gentis e confiem cegamente em estranhos? A falta de desconfiança nos causa estranheza, no primeiro momento. Eles podem te deixar ir embora de uma loja com um item em mãos sabendo que você irá voltar. Ou podem pagar algo para você sabendo que você pagará em retorno. Não há ansiedade ou cobrança excessiva. Apenas a plenitude causada pela confiança e pela certeza de que o que é certo, acontecerá.

Sem mencionar o sentimento de gratidão espalhado no ar, sentido no momento em que se curvam a você e agradecem com diversos “muito obrigado” durante o pagamento de um serviço. Uma sensação de que mesmo com a simplicidade, eles não poderiam ter desejado vida melhor e não poderia estar mais gratos por isso.

As associações que geralmente fazemos entre ‘falta de recursos’ e ‘falta de segurança’, entre ‘desconhecido’ e ‘desconfiança’ e entre ‘simplicidade’ e ‘pouca aceitação’ não são verdadeiras.

E eu me peguei questionando diversas vezes: Será que o Budismo tem um papel importante nesse comportamento?

 

Filosofia Budista

Não vou entrar em detalhes sobre a história do Budismo (você pode encontrar tudo no Google), mas há alguns princípios base relevantes para o tema desse texto. São eles:

1) As Quatro Verdades Nobres

São a base do budismo, descrito por Buddha, ao ter atingido a iluminação:

A primeira verdade é que a vida consiste em sofrimento e dor. A segunda verdade é que esse sofrimento é causado por desejos pessoais egoístas. A terceira é que esse desejo egoísta pode ser superado. A quarta é que o caminho para superar essa miséria é através do Nobre Caminho Óctuplo: um conjunto de 8 práticas que levam ao caminho da libertação.

2) E as práticas do Nobre Caminho Óctuplo são:

Visão correta, Intenção correta, Fala correta, Conduta correta, Modo de vida correto, Esforço correto, Atenção correta, Consciência correta e Concentração correta.

Essas práticas existem baseadas na compreensão de que o corpo-mente funciona de maneira corrompida e que é possível seguir um caminho de desenvolvimento (no caso, o Caminho Óctuplo) para atingir a libertação de todo o sofrimento em vida.

3) Karma:

Em linhas gerais, se relaciona à lei de causa-efeito. Ou seja, o que fazemos hoje – as nossas ações, intenções e pensamentos – trazem consequências para o nosso futuro, de forma positiva ou negativa (nessa ou em próximas vidas). Ao contrário do que é visto na cultura ocidental, o Karma não está ligado a um destino predeterminado, imutável. O que decidimos fazer hoje, pode mudar o nosso futuro.

 

Confiança, Gentileza e Segurança: De onde surgem?

Como um país budista, que vive diariamente os seus ensinamentos, é esperado que estes tenham grande influência na cultura e no comportamento da população.

Sendo um dos seus princípios o Karma, ou seja, o retorno para as suas vidas futuras daquilo que foi feito hoje, é de se esperar que você possa encontrar uma nota de 1000 BAHT caída em meio ao chão de uma rua movimentada. Simplesmente pelo fato de que “se aquilo não te pertence, ele não te pertence” e, de acordo com a lógica do Karma, tomar algo que é não seu pode trazer como consequência você ter algo tomado no futuro.

Confiar de olhos fechados em um estranho com tranquilidade? À partir do momento em que não é esperada outra forma de ser ou de se comportar, não há nenhuma estranheza nesse comportamento. Afinal, por que eu não confiaria, se essa é uma filosofia de vida que aprendi desde cedo?

Buda também deixou claro em seus ensinamentos 5 preceitos: Abster-se de tirar a vida; Abster-se de aceitar o que não é dado; Abster-se de má conduta sensual; Abster-me de falsos discursos; Abster-se de de intoxicantes, que são a base da negligência.

Será que a segurança e o baixo índice de violência ou roubos podem ser reflexo da incorporação diária dessa filosofia?

E se a aceitação e apreciação da realidade como ela é e o desapego ao sofrimento fazem parte das práticas para o caminho para a iluminação, por que não refleti-los nos pequenos gestos diários ao ser gentil e grato durante toda a jornada?

Bom, parece que é esse o caso por aqui.

 

Aceitação x Ambição

Bom, até aqui não há nenhuma dificuldade em absorver e aplicar na prática uma filosofia que possui tanta sabedoria.

O estado de mente padrão é o de paz, de gratidão e de satisfação em viver a vida, um dia após o outro. Não há medo, não há toxicidade, não há ansiedade.

Um paraíso para nossas almas.

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(aaaah…)

Mas, em algum momento intenso de trabalho, provavelmente iremos nos questionar:

Como conciliar a filosofia de aceitação e de uma vida harmônica, com as ambições enfurecidas e apaixonadas em crescer, desafiar o status quo e, muitas vezes, trazer o caos para nossas vidas?

Esse foi o principal ponto de interrogação ao desejar mergulhar cada vez mais nesse modo de viver.

Então, aceitação é deixar de desejar? É desapegar ao não necessitar? Como se mover e conquistar, sem a motivação que muitas vezes surge da falta ou do desejo de suprir as nossas inquietações?

Como acomodar a força de determinar o nosso futuro com a tranquilidade de aceitar e aproveitar cada momento de uma jornada incerta e imprevisível?

É contraditório ter objetivos ambiciosos? Será que eu vou com a correnteza ou eu remo incessantemente para seguir a direção previamente determinada?

 

Não é contraditório traçar objetivos ambiciosos.

O crescimento é fundamental. E a filosofia Budista não desencoraja esse objetivo e nem a definição de metas ambiciosas para as nossas vidas.

O que eu compreendi até então é que há, sim, uma diferença na abordagem do que estamos acostumados a fazer ao traçar as nossas conquistas. Onde está a mente nessa busca é o que importa. E o compromisso com a verdade interna, com a presença no ‘aqui agora’ e o entusiasmo na jornada, é crucial. E está acima de tudo.

Estamos acostumados com a cultura de traçar objetivos para alcançar os nossos sonhos:

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(Plano: dominar o mundo)

Visualizamos o destino final, planejamos a nossa estratégia, alocamos o nosso tempo e energia nas prioridades determinadas, buscamos motivação e disciplina para o cumprimento diário delas. Os objetivos nos dão direção e permitem que sejamos mais eficazes.

Não há nenhuma incoerência entre essa prática e o Budismo. A não ser quando:

  • Os princípios de conduta, as suas intenções e a sua própria natureza são deixados de lado durante essa busca. Os objetivos se tornam o tema central da sua vida, são adorados como deuses e desocupam os lugares onde deveriam estar os nossos princípios e valores. Conquista acima de tudo e de todos. Os fins justificam os meios.
  • Nossa mente está no futuro, em vez de estar no momento presente. Estabelecer objetivos e metas é olhar para o futuro, mas é ao mesmo tempo estabelecê-las e deixá-las de lado para que, diariamente, possamos focar no que é importante agora. Pensar apenas no futuro é estar em um estado constante de ansiedade. O que nos leva ao sofrimento desnecessário e, ao mesmo tempo, à má execução do que estamos fazendo no presente.
  • O apego aos resultados nos impedem que possamos explorar outros caminhos imprevistos e que podem nos levar a resultados ainda mais surpreendentes. É preciso compreender a diferença entre o apego ao objetivo final e a prática contínua e disciplinada em direção a uma intenção inicialmente estabelecida com base nos seus valores. Isso porque, se nos apegamos desesperadamente ao objetivo final, treinamos o nosso olhar para apenas atingi-lo. Não há espaço para o surgimento do que pode ser um melhor caminho para o que realmente desejamos. Nos limitamos a um “o que” sendo que, ao ter as nossas intenções e desejos no lugar certo, podemos cumprí-los por meio de vários e inesperados “o ques”.

Ou seja, colocar os objetivos no lugar onde eles devem estar, colocar a nossa mente onde ela deve estar e desapegar do controle excessivo traçado pelas expectativas da mente são boas práticas para conciliar paz e ambição.

 

Só peixe morto se deixa levar pela correnteza.

Se por um lado temos um extremos de comportamento “conquistar acima de tudo e de todos”, por outro, tem um comportamento inverso, tão danoso quanto o primeiro.

Podemos nos enganar ao interpretar a espiritualidade, o Karma ou o budismo como uma forma de descompromisso, adotando o mantra: “Tinha que ser assim”. Ou adotando a poesia do Zeca Pagodinho: “Deixe a vida me levar, vida leva eu”.

Mas, só peixe morto se deixa levar pela correnteza. O que quer dizer que:

Se estamos vivos é preciso viver. E para viver, é preciso agir.

Aproveitar a jornada não é apenas sentar em um barco e se deixar ir pelo rio, sem direção. É preciso intervir com os remos durante o trajeto

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(continue a remar, continue a remar)

Aproveitar a jornada é ter o destino final em mente, mas não apenas desejar ansiosamente que a jornada termine para só então aproveitar o momento.

Aproveitar a jornada é saber qual o destino final desejado, remar em sua direção, mas também não se desestabilizar com as mudanças de rota, com as pausas previstas ou imprevistas ou com os obstáculos do caminho.

É seguir no seu ritmo, com a sua filosofia, com o seu destino final em mente, aproveitando cada momento, aceitando os imprevistos que aparecerem como parte do aprendizado ou como redirecionamento do destino final.

“Deixar a vida te levar” não é um pensamento saudável à sociedade e não está alinhado ao Budismo. Uma vez que é preciso ação para gerar um efeito e que não há destino final pré-determinado. Ele é construído de acordo com o nosso comportamento e atitudes frente à vida.

E se ainda há sofrimento em nossas vidas, é porque é preciso alinhamento. E isso é parte do processo. Abster-se de sofrimento por meio da abstenção da ação e da sua contribuição é desistir da sua evolução e de viver a vida com entusiasmo, preceito básico da filosofia budista.

 

Não há incoerências, é preciso apenas sintonizar a frequência.

Não há nada de mal em ter ambição ou em buscar atingir nossos objetivos. Mas em uma cultura que valoriza a aquisição a todo custo, a fama e o crescimento desenfreado é preciso que estejamos sintonizados com a conduta certa e com a nossa intenção por trás desses objetivos traçados:

De onde eles vem? Eles vem pelo puro hábito de comparação ou por nos sentirmos mais ou menos do que certas pessoas? Eles existem para que possamos pertencer a determinados grupos ou para cumprir os pré-requisitos do que nos disseram que seria a imagem ideal de alguém de sucesso?

E para atingi-los é importante observar como operamos normalmente: Tendemos a nos acomodar ou a não parar de jeito nenhum? A ir com o fluxo do momento ou a controlar os resultados? A acelerar ou a diminuir o passo?

A observação e o ajuste de sintonia são necessários nessa jornada.

O caminho do meio, de acordo com o Budismo, é a melhor tomada de decisão. É abraçar a filosofia, paradoxal e incômoda de que “tudo importa e, ao mesmo tempo, nada importa”.

Em síntese: É saber viver remando o barco e ao mesmo tempo deixando-o ir com a correnteza. Já que qualquer outro comportamento é danoso: Ou você morrerá pela inércia ou acabará sem energia para remar.

Ou, ainda, poderá acabar sem ter um barco na próxima jornada.

Faz sentido?

PS: A busca pela harmonia é um dos princípios do branding ou do personal branding. É conectar e dar coerência todos os elementos referentes à sua marca – da sua missão à sua imagem, do seu discurso à sua prática – para que exista um sentido e ele seja captado pelo público. É isso que eu faço diariamente. Entretanto, em um nível mais profundo, tenho buscado adicionar mais um nível de harmonia: entre a marca pessoal (o ser e contribuir) e a nossa jornada (a nossa forma de viver). Por isso, esses tem sido os meus tipos de questionamentos recentes e que trago pra vocês nesse texto.

PS2: Com a absorção pouco a pouco dos ensinamentos budistas e com as tentativas de aplicação na vida prática, vira e mexe eu me pego perguntando: Será que eu deveria ter matado aquele pernilongo? Lei da causa-efeito, né.

PS3: Se você é budista, entusiasta ou conhecedor da filosofia, adoraria receber as suas considerações. Esse é apenas um texto que reflete a minha observação do cotidiano, leituras aleatórias e conexão dos pontos entre diversos temas na tentativa de resolver os meus desafios diários dessa jornada de maximizar a nossa contribuição para o mundo em harmonia.

PS4: Me desculpe pela empolgação dos vários PS’s!

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Juliana Saldanha – Estrategista em Personal Branding. Criadora do Método Go-to person. Tenho como objetivo te ajudar a posicionar e a comunicar melhor o seu valor e a maximizar a sua contribuição para a sociedade. Cada marca pessoal é única, porque não valorizá-la?

Mais textos sobre o assunto? julianasaldanha.com.br (Eu escrevo sobre marcas pessoais na minha newsletter: assine aqui)

Sobre Juliana Saldanha

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6 comentários

  1. Oi.
    Que belo texto! Adorei.
    Começando pela desconstrução, eita coisa dificultosa.
    Desmanchar um pouco do somos até aqui e, principalmente, vigiarmos para não nos desligarmos e voltar novamente.
    Uma das coisas que me ajuda muito é a meditação. Acho que não conseguiria sem ela.
    Adorei mesmo.
    Muito sucessos para vc menina!!!

    1. A desconstrução é a parte mais desafiadora mesmo! Obrigada demais, Ricardo! Sucesso pra você também! 🙂

  2. Incrível seu texto e sua vivência e observações. Obrigado pela reflexão e pelos pontos de comparação entre nossas sociedades.

  3. Que bom ter achado seu blog, agora estou te seguindo. Eu sugiro ler Sidarta, do Hermann Hesse, ganhador do Nobel de Literatura de 1948, escritor nesse momento esquecido mas que foi na minha opinião, o maior escritor da primeira metade do século XX. A abordagem e vivência budistas permeiam toda a sua obra. Vale conferir!

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