Pugliese e a Cultura do Cancelamento. Estamos certos em cancelá-la?

abril 29, 2020

Além de eventos na quarentena, reuniões que poderiam ser apenas um email e assinaturas de Netflix, agora também é possível cancelar pessoas.

“Cancelar alguém” é um novo conceito da cultura pop. Significa retirar o apoio nas redes sociais a figuras públicas e empresas depois que elas fizeram ou disseram algo que foi considerado censurável ou ofensivo.

Optar por, individual e silenciosamente, não seguir um influenciador ou não comprar um produto de uma empresa como forma de protesto não é suficiente. A Cultura exige que declaremos o nosso repúdio, usemos hashtags em protesto e mandemos mensagens enfurecidas aos personagens e seus patrocinadores.

(“O que diminui um de nós, diminui todos nós”)

Gabriela Pugliese foi o caso mais recente. Uma das influenciadora fitness mais conhecidas, ela organizou uma reunião de amigos em casa no último sábado, mesmo durante a quarentena. Cenas da confraternização foram compartilhadas no seu Instagram, o que causou a indignação do público.

Mesmo com a publicação de um vídeo seu com um pedido de desculpas, grandes marcas suspenderam os seus contratos de parceria, dentre elas Hope, Rappi, LBA, Evolution Coffee, Liv Up e Kopenhagen.

Após a repercussão, Gabriela decidiu desativar temporariamente a sua conta no Instagram, o que segundo a sua assessoria foi uma atitude para dar um tempo das redes sociais.

(Gabriela Pugliese em seu último vídeo no Instagram: um pedido de desculpas)

Voz às Minorias

A Cultura do Cancelamento ocupa um lugar importante para as minorias e movimentos contra atitudes que antes poderiam passar como corriqueiras ou normalizadas na nossa sociedade, já que passam a ter apoio e a serem mais difundidos.

Um exemplo é o #MeToo: movimento contra o assédio e a agressão sexual que foi viralizado no Twitter em 2017, encorajando as vítimas de assédio a twittar suas experiências e dar às pessoas a noção da magnitude desse problema.

O movimento levou à acusação (e recentemente à condenação de 23 anos de prisão) de Harvey Weinstein, um influente ex-produtor de filmes em Hollywood, que em outros tempos poderia passar despercebido aos olhos do público.

Outros famosos como MC Gui, Carlinhos Maia, Logan Paul e diversos outros também foram expostos e “cancelados” (boicotados) por atitudes ou discursos tidos como inadmissíveis.

O cancelamento é uma reação: Já que não dá pra pegar o telefone e discar para autoridades responsáveis, ao menos podemos usar as redes sociais como um Reclame Aqui e ajustar o comportamento de “pessoas públicas”.

“Deixa eu apagar você da minha vida” (Imagem Gary Waters/ Getty Images)

O cancelamento pode abalar pessoas, antes inalcançáveis, com ao ameaçar o que eles possuem de mais valioso na era da atenção: a sua reputação online.

Voz da Maioria

Cancelar alguém online vai além de uma escolha individual como, por exemplo, parar de acompanhar um influenciador ou não comprar um ingresso para participar do próximo show de um artista.

O cancelamento é anunciado. Ele é defendido e debatido em voz alta. Ele é incendiário.

Caso contrário, não há o efeito esperado: a exposição e a humilhação pública de quem foi cancelado.

(“The Scarlet Letter,” 1926)

Se essa atitude de desaprovação acontecesse de forma consciente, cada um de nós optaríamos em tomar decisões baseadas em nossos valores.

E em um silencioso senso comum, uma atitude não aceitável continuaria provocando consequências negativas para o infrator: contratos desfeitos, menos renda em shows, menos atenção em seus conteúdos nas redes sociais ou mesmo à condenação à prisão. Isso tudo sem a necessidade da humilhação pública.

A realidade é que a desigualdade, a falta de autorresponsabilidade e de autoreflexão impedem que isso aconteça na prática. Ainda é preciso usar as praças públicas para mostrar o que é “certo” ou não.

E ainda é preciso que existam delatores online autointitulados para essa função para que o aprendizado baseado na humilhação sirva como exemplo para outros.

Uma brecha para abusadores

O mesmo poder que traz racistas, misóginos e abusadores à vista da condenação do público, também pode tornar cada um de nós um abusador.

Se por um lado esse comportamento ocupa um papel importante para dar voz às minorias e a movimentos em busca de igualdade, por outro lado ela dá poder a opressores que se gratificam emocionalmente pela humilhação pública ou por quem busca atenção e pertencimento a algum grupo.

Aquele mesmo sentimento de satisfação de quem cometeu bullying na escola ou dedurou um coleguinha ao professor. Uma gratificação imediata vinda pelo uso de poder e por pertencer ao grupo mais popular da escola.

(Talvez você também seja uma Menina Malvada?)

O que leva a alguém mandar mensagens enraivecidas de ataque ao indivíduo ou às marcas patrocinadoras exige investigação – de preferência interna.

As boas intenções em contribuir para “o bem de todos” podem esconder a inveja, a solidão, a intolerância de discursos e ideias diferentes, a busca por pertencimento ou um descontentamento interno pelo seu papel em suas próprias vidas.

A Punição

Pugliese foi a rejeitada dessa vez e exposta em praça pública como exemplo. E a punição foi sentenciada por quem está do outro lado da tela do celular.

A atitude de escrever “apenas uma mensagem” em casa parece nos isentar da responsabilidade das suas consequências, por não nos considerarmos responsáveis diretos.

É uma atitude tão fácil que nos esquecemos de dimensionar as suas possíveis consequências. Ou se temos essa consciência, podemos mensurar o impacto delas baseados nos nossos próprios paradigmas do que é pesado ou não, justo ou não:

“Afinal, o que são contratos cancelados para quem já tem uma vida tão boa, não é mesmo?”.

Entretanto, contribuir para o cancelamento de alguém é contribuir para uma força de reprovação sobre a qual não temos nenhum controle e que não é passível de ser prevista ou dimensionada.

E, de repente, erros humanos passíveis de perdão e esquecimento podem se tornar condenações perpétuas. Ou mesmo irreversíveis.

O Documentário “Don’t F ** k With Cats: Hunting An Internet Killer” relata um desses casos: Justiceiros online em busca de um torturador condenaram publicamente um homem por ser o responsável por matar e torturar gatos em vídeos do Youtube. O homem, inocente, não aguentou a pressão e acabou cometendo suicídio.

(Documentário do Netflix sobre a caça online de um serial killer)

Em Terra de Ninguém: Qual o método de Ensino adequado?

Em Terra de ninguém, a Cultura do Cancelamento tem sido uma das formas de ditar as regras no meio online e pelo exemplo de alguns mudar o comportamento – ao menos aquele aparente – do que seria ideal para todos nós.

Não tenho a competência para trazer reflexões sobre a eficácia desse “Método de Ensino”.

Ele vem sido temas de pesquisa nos meios acadêmicos e até mencionado com ar de preocupação de figuras públicas como Obama, que falou sobre o tema durante um evento direcionado ao ativismo jovem no Obama Foundation Summit.

“Pessoas que estão fazendo coisas boas tem falhas” – Obama.

(Assista parte do seu discurso aqui).

Independente da discussão da eficácia desse método, o mais importante é a nossa autoavaliação no envolvimento desses casos:

  • O que a minha reação e indignação contra um influenciador ou uma empresa quer dizer sobre mim?
  • Como eu tenho aplicado o hábito do cancelamento na minha vida pessoal? Cancelar pessoas é um hábito saudável?
  • E se eu fosse cancelado como eu me sentiria? Seria justo? E por quanto tempo eu deveria sofrer as consequências?
  • E no caso da Pugliese: o que me incomodou nessa atitude? O não respeito à quarentena, os hambúrgueres em uma festa de uma influenciadora fitness ou pelo fato de ela não ser uma imagem perfeita, mas um ser humano que erra?

(Que tal fazer uso do cantinho da reflexão?)

Black Mirror: Estamos preparados?

A intolerância é um dos subprodutos dessa Cultura que vem se tornando enraizada.

Intolerância que ao mesmo tempo pode fomentar a igualdade (e paradoxalmente a tolerância e aceitação), mas pode também reforçar a nossa hipocrisia, crueldade e o nosso lado menos humano nas relações.

A consequência em larga escala é o que já vivemos em menor escala: depressão, ansiedade e exclusão.

A cultura do cancelamento é por si só, como qualquer ferramenta, neutra. E assim como qualquer outra pode ser usada para curar ou para destruir.

Para um consenso sobre como podemos nos comportar melhor no meio online é preciso acima de tudo autorreflexão e ter em mente um lembrete:

Uma vez que somos todos seres humanos, uma espécie imperfeita e que comete falhas, eventualmente todos nós seremos “cancelados”. Será que estamos realmente prontos para essa Cultura?

(Se ainda não assistiu, veja o episódio White Christmas de Black Mirror – Será que estamos mesmo tão longe dessa ficção?)

PS: Sobre a Pugliese (texto pós-publicação)

Sobre o caso da Pugliese, recebi diversos (diversos mesmo) comentários nas redes apontando a reincidência e a sequência de atitudes irresponsáveis como influenciadora de alto alcance. Tanto pelo fato de ela ter se envolvido com um episódio que levou a uma fatalidade por causa do Covid-19 (Ela testou positivo para o vírus e mesmo assim circulou entre vários convidados em uma festa de casamento), quanto pelas inúmeras alegações de propagandas enganosas e conselhos não embasados tecnicamente (alô nutricionistas). 

Para muitos, essa foi a gota d’água e o cancelamento veio em momento oportuno. 

Deixo aqui também uma reflexão do Hugo Tognolo:

“Sobre o cancelamento no caso dela, eu me atrevo a dizer que todos são responsáveis pelo seu trabalho, se eu cometer um grande erro no meu trabalho provavelmente vou ser mandado embora e dependendo da gravidade pode virar uma mancha eterna no meu currículo. Logo se a sua profissão é ser influencer existem também responsabilidades, pode ser “mandada embora” dos patrocínios e ter essa mancha no currículo, com as devidas proporções de visibilidade.” 

E quanto à sua saída do Instagram, como disse a Bárbara Penido: pode ser nada mais do que uma estratégia para não perder ainda mais seguidores nesse momento caloroso. 

E aí, é válido cancelar a Pugliese?

Mais textos sobre o assunto? julianasaldanha.com.br (Eu escrevo sobre marcas pessoais na minha newsletter: assine aqui)

Sobre Juliana Saldanha

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3 comentários

  1. Brilhante o seu posicionamento sobre o “cancelamento”. Os pensamentos extremamente bem estruturados e os argumentos, todos, muito relevantes. Parabéns.

  2. Jú, o texto está perfeito e essa análise do “cancelamento” é muito válida e oportuna.
    No caso específico da Pugliese concordo com os comentários dos seus seguidores de que “não é a primeira vez”. Essa reflexão do Hugo faz todo sentido.
    Só precisa corrigir uma informação no seu Ps.
    Na verdade a Pugliese, assim como diversas outras pessoas (famosos inclusive) se infectaram na festa de casamento da irmã dela, na qual estava presente um casal de italianos (eu acho) contaminados.
    Esse foi um dos primeiros focos no Brasil e que ajudou a espalhar a doença.

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